A Sociedade Civil Contra Impunidade na Gestão de Água Potável no Rio de Janeiro

Escassez e disparada de preços: água tem mais destaque em posto do que os próprios combustíveis

Violação de direitos humanos, desigualdade, abismo social e degradação ambiental na crise hídrica do Rio de Janeiro. Crise é oportunidade e aqui há uma janela para mudança, que se revelou a partir da ação de inúmeros indivíduos para fortalecer engajamento da sociedade civil contra impunidade na gestão de água potável no Rio de Janeiro.

Este post é um agradecimento a cada um que se mobilizou e viabilizou o processo de mudança que se iniciou em janeiro de 2020 com o engajamento e a adesão de mais de 1.000 indivíduos na campanha Avaaz.

O post é também uma atualização dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos desde então, que conta também com a liderança de Tatiana Bastos, presidente do Instituto de Direito Coletivo (IDC) e de um coletivo da sociedade civil composto pelo Instituto Clima e Sociedade (iCS), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Pró-Consumidor, Casa Fluminense, Meu Rio e ComCat – Comunidades Catalisadoras, além de ativistas e especialistas.

A Ação Individual Faz Diferença Sim nos Processos de Mudança.

De defensora do minimalismo e incentivadora que amigos adquirissem filtros de água potável em suas residências para reduzir impacto ambiental, passei a uma voraz consumidora de água em garrafas PET. A reviravolta se deu no último ano, devido a água com gosto e sabor oferecida à população fluminense pela companhia de abastecimento de água, CEDAE.

Vale ressaltar que essa preocupação com o maior impacto ambiental: 6 a 32 vezes maior emissão de gases de efeito estufa (GEE) 1 e 20 vezes maior geração de resíduos é um luxo de uma mulher branca e privilegiada que teve condição de arcar com a iguaria.

A realidade da esmagadora população da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense é completamente distinta. Pequenos empreendedores que dependem de água potável em seus negócios amargaram redução de suas margens. Quem pôde apertar os seus já restritos orçamentos para acomodar as garrafas de água, cortou outros gastos inclusive reduzindo aquisição de alimentos e muitos sem recursos adoeceram consumindo a água contaminada.

O abismo social na crise hídrica e a insegurança de toda a população

Uma coisa há em comum entre os privilegiados e a população mais vulnerável: não há sustentação de vida sem o acesso universal a água potável. Recursos financeiros, num extremo de crise hídrica podem ser irrelevantes: não há água engarrafada ou caminhões pipa que atendam à demanda. É como um indivíduo, porque dirige um carro veloz , reivindicar, num engarrafamento, querer se locomover a 120 km/h.

Escassez e disparada de preços: água tem mais destaque em posto do que os próprios combustíveis
Garrafas d’água passam a ser expostas na calçada, tal o volume de vendas nos supermercados.

Esta experiência tem sido um teste chocante para perceber como a crise climática pode realmente afetar a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana que depende quase que exclusivamente de um único sistema de abastecimento de água sem qualquer plano de emergência, quiçá um plano de resiliência com horizonte de longo prazo como 50 ou 100 anos. A falta de transparência e a ausência de liderança política nos governos em todas as esferas federal, estadual e municipal e os dados truncados são apenas alguns dos ingredientes que só aprofundaram a crise.

Deixa que eu deixo

Há uma crença de que se o sistema de tratamento de água fosse privado, não viveríamos esse caos, mas o que dizer se na água encanada até mesmo de Búzios, importante cidade turística no Estado do Rio, cuja água é tratada pela Prolagos2 que é uma empresa privada, 54% das amostras em 2014 tinham presença de coliformes totais ? E o que falar da água na rede de distribuição que serve à Avenida Atlântica, valorizado endereço no Rio de Janeiro, que não teve atendido parâmetros de cor, turbidez e cloro? Ou quando duas amostragens no mesmo mês na água que abastece uma rua no bairro Humaitá, de classe média-alta, tem presença de Escherichia coli? Como estará então a qualidade de água na rede de distribuição nas regiões onde residem população mais vulnerável?

64 % das amostras de água fora de especificação em Búzios.
54 % das amostras de água estavam fora de especificação em Búzios.

Quanto mais tentava levantar informações para dar sentido à amplitude do problema, mais perplexa ficava. Eu digo tentavaporque efetivamente muitas vezes não consegui acesso a informações, que deveriam ser públicas. Foi mais fácil levantar dados sobre não conformidades e qualidade de água nos Estados Unidos do que eu meu próprio país, onde o acesso ao banco de dados do SISAGUA do Ministério da Saúde foi negado pelo governo federal. Posteriormente, formalizando pedido via Lei de Acesso a Informação, obtive apenas os dados brutos, que são inviáveis de serem interpretados pelo cidadão comum.

Constatando estes sem-número de não-conformidades, lembrei-me de situações em quadra jogando voleibol: duas pessoas estão num lance crucial, falam “deixa”, ninguém vai na bola e a ela cai no chão entre estas duas pessoas paralisadas.

Foi exatamente esta a percepção que tive sobre os stakeholders envolvidos no sistema de abastecimento de água. Com estes atores aparentemente paralisados, entrei então em campo para criar e fortalecer um movimento de engajamento da sociedade civil para juntos exigir uma resposta urgente dos poderes públicos.

Mapeamento de Risco à Vida pela Falta de Acesso à Água Potável
Principais Stakeholders e Lacunas Identificadas

“Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo” – provérbio africano

Neste caso, até mesmo para ir rápido, é preciso ir em grupo, para contar com diversos expertises e perspectivas para melhor responder à crise.

Abrindo mão do pensamento limitador que me dizia ser impossível interferir neste complexo sistema, elaborei um relatório para engajar o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) descrevendo a gravidade da situação, para o qual recebi retorno positivo. Em seguida, com pronto apoio de Alice Amorim, do Instituto Clima e Sociedade (iCS), foi organizada reunião que contou com a presença de vários advogados para discutir alternativas: Caio Borges (iCS), Karine Duarte, e Tatiana Bastos que preside um coletivo de advogados que atua voluntariamente em defesa de direitos humanos, Instituto de Direito Coletivo. Em paralelo, ofereci suporte técnico voluntário ao GAEMA – Grupo de Apoio Especializado em Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). O acesso ao primeiro relatório que elaborei está disponível neste link e mostra as inúmeras não-conformidades.

Posteriormente, o coletivo foi expandido para aumentar ainda mais a representatividade da sociedade civil fluminense, especialmente para fortalecer as vozes da população mais vulnerável: Pró-Consumidor, Casa Fluminense, Meu Rio e ComCat – Comunidades Catalisadoras.

Em todas as reuniões, ficou claro no grupo o senso de urgência e um profundo interesse de estar à serviço da população fluminense de forma técnica e também inclusiva socialmente. O ambiente de confiança estabelecido, o compartilhamento destes valores e o interesse em desenvolver um trabalho de excelência foram a base para avançarmos juntos nas atividades.

Batalha Judicial contra CEDAE desde 2015

Descobrimos que em 2015, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) através do GAEMA (Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente) entrou na justiça contra a Cedae e ganhou a sentença.

Conforme indicado nesta notícia do site do MPRJ:

“o MPRJ defende que a CEDAE fornecia aos consumidores água potável inadequada ao consumo, fora dos padrões técnicos de qualidade, violando os direitos dos consumidores e causando inúmeros prejuízos à sociedade, e por esses motivos requereu a devida reparação pelos danos causados e a regularização da qualidade da água fornecida. A empresa de abastecimento recorreu e apresentou alegações sobre o monitoramento e a qualidade da água distribuída aos consumidores. Contudo, o MPRJ alegou que comprovou, por meio de Inquérito Civil, que fiscaliza a atividade da CEDAE desde 2008, e concluiu que a quantidade de coliformes totais na água fornecida aumentaram progressivamente a partir de 2011, demonstrando uma tendência na piora do serviço.

A Justiça reconheceu que as provas apresentadas pelo MP fluminense nos autos comprovavam a não conformidade aos parâmetros técnicos de qualidade estabelecidos pelo Ministério da Saúde na portaria MS º 2.914/20, e condenou a empresa.

“É lamentável que em pleno século XXI, ainda exista necessidade de se ajuizar ações dessa natureza, na qual se pretende a efetiva prestação de serviço destinado oferecer agua limpa á população. Reconhecer o serviço prestado como satisfatório e deixar de condenar a Ré nos presentes autos, não só põe em risco a saúde pública, como significa consentir com o nítido descaso da prestadora. A população paga para ter acesso á água potável e assim deve receber o produto contratado, não havendo qualquer justificativa plausível para justificar a existência de impurezas na forma detectada pela pericia”, diz um trecho da sentença.

Foi chocante constatar que – mesmo com todos os esforços do MPRJ e do Tribunal de Justiça, 5 anos depois estávamos diante de mais uma não-conformidade, que foi inclusive reincidente em janeiro/ fevereiro de 2021.

Amigos da Corte

Aproveitando este processo judicial aberto pelo MPRJ contra a Cedae, Tatiana vislumbrou a possibilidade da sociedade civil entrar neste processo para reforçar ainda mais a ação do MPRJ.

Assim, contando com sua liderança e apoio de todo o coletivo, o Instituto de Direito Coletivo (IDC) peticionou entrada no processo como amicus curiae (Amigo da Corte) para fortalecer processo e requerer maior transparência nas informações sobre a potabilidade da água.

Dada a complexidade do tema, a participação do IDC foi apoiada pelo MPRJ e deferida pelo Tribunal de Justiça. Assim, já a partir de dezembro de 2020, passamos a questionar e cobrar diretamente à CEDAE pelas não-conformidades e não-cumprimento da legislação. O primeiro relatório encaminhado, ilustrando a violação de direitos do consumidor e falta de transparência, está disponível neste link. Infelizmente, a resposta da CEDAE em fevereiro foi seletiva, e apenas parte dos questionamentos foram abordados pela companhia. Ademais, à despeito da reincidência da crise de potabilidade de água em janeiro/ fevereiro de 2021, a empresa insiste em declarar que seus processos de gestão, comunicação e transparência estão funcionando a contento.

Este posicionamento vago, ambíguo e incompleto reforça a importância de atuação da sociedade civil para, como consumidores, requerer transparência na gestão e comunicação para reverter este crítico quadro.

Quando a isso se soma outra reincidência de odor e sabor na água e ocorrências de falta de água num momento crítico da pandemia, além de diversas outras não-conformidades, como despejo de esgoto irregular, e atuação pífia da agência reguladora, AGENERSA, maior ainda a importância desta ação.

Suporte Técnico desde a Captação: Origem da Água

Como a qualidade da água potável fornecida é muito influenciada pela qualidade da água de seu manancial, e devido aos graves problemas de saneamento na bacia hidrográfica do Guandu, que vem se intensificando nas últimos anos como aumento de floração de bactérias tóxicas e degradação ambiental, Tatiana recomendou ampliação de nossa atuação para apoiar as ações da forma mais eficaz e eficiente possíveis. Com entusiamo, apoiei o IDC na eleição integrando equipe para representar a sociedade civil na área técnica e científica.

Em março, o IDC foi confirmado membro titular no biênio 2021-2023 no Comitê da Bacia Hidrográfica do Guandu e contribuirá tanto nas reuniões da Plenária como também nas discussões das Câmeras Técnicas de Saneamento Básico e de Estudos Gerais.

Enfrentamento a Outras Não-Conformidades Incluindo Potencial Presença de Agrotóxicos em Água Potável

A transparência na gestão de água potável na região metropolitana do Rio de Janeiro junto a CEDAE é um importante pilar para que sociedade civil participe da co-criação de soluções com todos os stakeholders e demande resposta contundente ao poder público.

Apesar da importância estratégica deste projeto, que abrange população de cerca de 9 milhões de pessoas, ele é um recorte de um problema ainda maior que atinge todo o Estado do Rio de Janeiro.

Apesar de essencial à vida humana, o monitoramento sistematizado da qualidade da água tem sido negligenciado pelos órgãos públicos de controle e desconhecido pela sociedade em geral. Como qualquer sistema de banco de dados, a qualidade e frequência de preenchimento das informações impactam diretamente na efetividade dos dados.

Inúmeros municípios ainda não fiscalizam a água de abastecimento como requer a legislação e muitos não realizam testagem de substâncias, inclusive de residual de agrotóxicos. Este fato é preocupante visto que o número de substâncias que o governo federal tem aprovado aumentou sobremaneira nos últimos anos, colocando em risco a população.

Em levantamento preliminar dos dados dos 92 (noventa e dois) municípios do Estado do Rio de Janeiro feito pelo IDC, observou-se, no período compreendido entre 01/01/2016 a 30/06/2020, que nenhum município fornecia integralmente as informações estabelecidas no Anexo XX da Portaria de Consolidação n°5/2017 do Ministério da Saúde, que inclui também o monitoramento do padrão de potabilidade da água quanto a substâncias químicas, como agrotóxicos, cianotoxinas e radioatividade.

Expansão do Engajamento da Sociedade Civil para lidar com Impunidade

Por este motivo, para ampliar o movimento e impacto, o Instituto de Direito Coletivo está buscando recursos financeiros para:

. Realizar o cruzamento dos dados mínimos estabelecidos pelo Ministério da Saúde para monitoramento da potabilidade da água com os dados preenchidos de todos os indicadores;

. Mapear a estrutura de pessoal de monitoramento dos 92 (noventa e dois) municípios e necessidade de capacitação / física para o cumprimento das obrigações estabelecidas;

. Mapear pontos de monitoramento especial, como hospitais, clínicas de hemodiálise e entidades de longa permanência de idosos, entre outros;

. Estreitar ainda mais a colaboração técnica com o Ministério Público, criando canais de engajamento para que as perspectivas e demandas da sociedade civil sejam a base da co-criação de um novo paradigma que promova direitos humanos pelo acesso à água de qualidade e contra a impunidade que assola o estado há décadas.

Que tal juntar esforços neste projeto e apoiar a Campanha? Saiba mais aqui e cadastre-se para receber atualizações.

  1. De 6 a 32 vezes maior emissão de GEE de acordo com análise de ciclo de vida no contexto americano, variando do tipo de embalagem PET e se a mesma é fabricada localmente ou importada). Disponível em https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/64482/Dettore_thesis.pdf;sequence=1
  2. A empresa não disponibiliza em seu site nenhuma análise de água que fornece aos municípios.
Cristina Mendonça

Master of Science in Urban and Environmental Engineering from Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro (PUC-Rio) and Technical University of Braunschweig, Executive MBA from COPPEAD-UFRJ (Federal University of Rio de Janeiro), specialist in R&D from COPPE-UFRJ, Chemical Engineer from UFRJ, and leadership courses in personal, social and cultural transformation processes.

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