O novo documentário Seaspiracy: o Mar Vermelho da Netflix, é descrito em seu site como “controverso, provocante e investigativo”. Se pudesse, recomendaria criar uma sessão ‘convite’ no mesma página do site para apoiar emocionalmente os espectadores ao que estará pela frente nos 89 minutos de filme. “Relaxe, sem pré-julgamentos, pré-conceitos e, com autocompaixão permita-se abrir para assistir a uma verdade muito inconveniente”.
Sou uma pessoa intensa, mas não é exagero a recomendação que faço dado o conteúdo que o documentário nos revela.
Quando somos apresentados a dados que confrontam nossas identidades, pessoal e cultural, há uma tendência a nos bloquearmos e nos fecharmos. O que isto significa?
Na prática, as reações variam quando nos vemos em situações de conflito, no caso, o conteúdo deste filme. A pessoa pode ficar tensa, agitada, a tal ponto que pode num extremo desqualificar o enredo e trama, atacar a produção ou até mesmo interromper a sessão. Outra dinâmica comum é ficar paralisada sem entender o que se passa, num estado de confusão. Estes bloqueios são expressões de movimentos de defesa de nosso sistema nervoso, atacar, fugir ou paralisar. Quem de nós nunca teve essa experiência?
Tudo para nos ‘proteger’ e nos blindar de um conteúdo que mexe profundamente com nossa identidade, nossa cultura e com os sistemas que somos co-criadores e onde estamos inseridos.
Mas afinal, que conteúdo é este?
Produzido pela mesmo diretor executivo de Cowspiracy, o Segredo da Sustentabilidade, que questiona a sustentabilidade da indústria de carnes e What the Health, que traz evidências contundentes sobre como dieta impacta a saúde, ambos os filmes também disponíveis pela Netflix, o novo documentário joga luz sobre a insustentabilidade de nossa relação com os oceanos e os seus habitantes.

Pode deixar que não darei spoiler, destacarei apenas algumas reflexões em formas de perguntas, que poderá apoiar e inspirar quando assistir ao documentário:
- . É possível lidar com as múltiplas e interconectadas crises que vivemos, ambientais, sociais, econômicas, culturais e existenciais de forma fragmentada? O filme ilustra estas dimensões. Leia mais sobre sindemia, sinergia de pandemias, um conceito que ampliei a partir de definição criada pela Comissão Lancelet1.
- . Há uma pílula mágica que equacione estas múltiplas e interconectadas crises? Neste sentido, é possível ignorar as ações individuais para lidar com estas crises? A não inclusão nos leva a um cenário de prosperidade ou de um auto-extermínio?
- . Como tornar empresas e governos responsáveis quando processos não são transparentes? É possível?
- . O desenvolvimento pessoal pode ser negligenciado em processos de mudança? Por desenvolvimento humano e pessoal me refiro também ao nosso modelo mental, nossa lente através da qual vemos o mundo. A ética é uma destas qualidades de desenvolvimento.
O filme não aborda este ponto, mas gosto muito da definição do psicólogo Roger Walsh.
“Uma intenção é ética quando ela melhora o bem-estar e prosperidade de si mesmo e de outros”.
Seria possível ampliar a capacidade da definição de outros? Por exemplo, onde possamos acolher pessoas de diferentes culturas, países, etnias, raças, condições econômicas, visões de mundo e até de outros seres e formas de seres? Esta capacidade poderia ser estimulada e desenvolvida?
- . Como promover mudanças sistêmicas que requerem que até mesmo as organizações ambientalistas e filantrópicas que desejam criar tais mudanças, estejam abertas a mudarem a si próprias? Como estimular um novo olhar para seus processos internos, suas crenças, relações e formas de agir?
Água, que água? Uma verdade muito inconveniente
Vendo esse filme sobre oceanos, não pude deixar de lembrar do excelente resumo sobre mudanças sistêmicas escrito por John Kania, Mark Kramer e Peter Senge, pesquisadores sobre mudanças de impacto: “A Água da Mudança de Sistemas”. Re-escrevo abaixo um pequeno trecho.

Foto por Dalton Carawayem Unsplash
Certo dia, um peixe está nadando quando outro peixe aparece e diz “Ei, como está a água?”. O primeiro peixe olha de volta perplexo para o segundo peixe e depois diz “O que é a água?”
Como a noção de mudança de sistemas continua a estimular a imaginação de organizações2, é importante ter em mente que a mudança de sistemas, como forma de fazer progressos reais e eqüitativos nos problemas sociais e ambientais críticos, requer uma atenção excepcional ao trabalho detalhado e muitas vezes mundano de perceber e agir sobre muita coisa que é implícita e invisível para muitos, mas que constitui esta água. Fazer grandes apostas para enfrentar um problema social sem primeiro mergulhar na compreensão do que está mantendo o problema no lugar é uma receita para o fracasso. Por outro lado, chamar a atenção para mudar a dinâmica do poder em jogo, identificar onde as pessoas estão conectadas ou desconectadas de outras que devem fazer parte da solução, expor os modelos mentais que inibem o sucesso na mudança de políticas e investigar as formas pelas quais as condições internas de organizações ajudam ou dificultam as aspirações externas – esta é a natureza do sucesso na mudança de sistemas. Esta é a mudança dos sistemas.
Criando capacidades para ver a água
“O progresso real e eqüitativo requer uma atenção excepcional ao trabalho detalhado e muitas vezes mundano de perceber o que é invisível para muitos.”
John Kania, Mark Kramer e Peter Senge
Recomendo a leitura do post que apresenta as investigações e todas as dimensões de mudança que sugerem a emersão de um nova forma de ser como indivíduos, cultura e sistemas que criamos e dos quais fazemos parte.
Argumento que a não integração das questões subjetivas e intersubjetivas de mudança (visão de mundo, valores, crenças, inteligência psicológica e emocional, etc) nos prendem em polarizações e levam nosso desenvolvimento ao auto-extermínio.
Temos um sem-número de exemplos da consequência desta abordagem. Mas escrevendo agora do Brasil, epicentro global da pandemia de Covid-19, experimento na pele e na alma a dor e a devastação dessa política. Seres humanos, animais e toda a natureza somos objetificados e transformados em números que alimentam uma economia que está em queda livre. Afinal, não há economia com cidades e empresas mortas ou com sobreviventes com traumas psicológicos profundos. Tampouco há vida para privilegiados que muitos se acham até mesmo autoimunes à crise. O sistema de saúde inteiro colapsa, como é o caso de inúmeros hospitais privados que não tem leitos para UTI. E muito menos há vida e dignidade aos trabalhadores essenciais que se arriscam em transportes públicos lotados para servir aos abastados. A população que vive em comunidades, sem qualquer condição de fazer isolamento social se contrair Covid-19 está atualmente à deriva, apesar das pressões para vacinação prioritária e auxílio emergencial.
Para que mudanças ocorram, precisamos nos sentir profundamente incomodados e desconfortáveis com a situação presente atual. É este ímpeto que impulsiona as mudanças. E reflito agora, quantas desgraças e calamidades mais teremos que vivenciar, seja em relação à saúde de nossos oceanos e ao bem-estar de outras espécies ou a situação em meu país, em particular, para que mudanças realmente transformacionais ocorram?
Agradecimentos
Finalmente, faço um agradecimento a Netflix. Muitos de seus filmes e séries têm sido um veículo para nos conduzir a um beirada evolutiva abordando temas como inclusão social, racismo e equidade de gênero, nova economia, novo capitalismo, saúde integral e alimentação em nossa cultura.
Por fim e não menos importante, compartilho minha profunda gratidão pela equipe de Seaspiracy. De forma corajosa e muito vulnerável, trouxeram ao mundo uma importante perspectiva sobre nosso oceano compartilhado e seus habitantes. Parabéns!
- SWINBURN, Boyd A; KRAAK, Vivica I; ALLENDER, Steven; et al. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet, v. 393, n. 10173, p. 791–846, 2019. Disponível em <http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0140673618328228> ↩
- O texto original é focado em filantropias, mas é pertinente a qualquer entidade, privada, não-governamentais ou governos. ↩